Erico
Veríssimo (1905-1975)
DADOS BIOGRÁFICOS
Erico Veríssimo
nasceu em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em 1905. Filho de família rica e
tradicional, arruinada no início do século, Erico se viu forçado a exercer
várias funções: ajudante de comércio, bancário, proprietário de farmácia. A
biblioteca paterna lhe deu oportunidade de, bem cedo, tomar contato com as melhores
obras francesas. Foi leitor assíduo de autores de língua inglesa.
Começou os
estudos em Cruz Alta, fez o ginásio em Porto alegre, mas precisou, aos 18 anos,
abandonar os estudos para trabalhar como empregado de um armazém de secos e
molhados. Aos 25 anos, mudou-se para Porto Alegre a fim de tentar carreira
literária. Conheceu Augusto Meyer, escritor modernista, que o encaminhou para o
jornalismo literário. Estreiou em 1932, com o livro de contos Fantoches. Em
1933, publicou seu primeiro romance, Clarissa, recebido muito bem pelo público,
merecendo definitivamente popularidade.
Foi
Conselheiro Editorial e tradutor da Editora Globo, publicando grande parte da
literatura inglesa lida no Brasil a partir dos anos 30. Atuou decisivamente
para a inclusão do Rio Grande do Sul na vanguarda intelectual do país, a partir
dos anos 30 e 40. Tornou-se conhecido no exterior, especialmente, nos Estados
Unidos da América do Norte e Portugal.
Nos Estados
Unidos da América do Norte, lecionou literatura brasileira e, em 1953, a
convite da Organização dos Estados Americanos, dirigiu o Departamento de
Assuntos Culturais da União Pan-Americana, em Washington. O registro das
visitas aos Estados Unidos se encontra nas obras O Gato Preto em Campo de Neve
(1941) e a Volta do Gato Preto (1946). Visitou muitos outros países, colhendo
material que resultou em livros como México (1952) e Israel em Abril (1969).
Suas obras
foram vertidas para as principais línguas modernas. Seus romances são
continuamente reeditados e, Erico Veríssimo, ao lado de Jorge Amado, foi o
primeiro escritor a viver de sua arte no Brasil. Segundo Wilson Martins, o
escritor, embora não corresponda, enquanto concepção e técnica, àquilo que se
considera Modernismo, "é um dos escritores fundamentais do movimento por
haver feito, fora de São Paulo, o que nenhum dos revolucionários de 22
conseguiu fazer: o romance urbano moderno, mais interessado em interpretar o
homem com fidelidade", sendo, portanto, "estrita correção crítica
situá-lo entre os que deram ao Modernismo romanesco justamente o que lhe
faltava (e que a morte de Alcântara Machado impediu-o de realizar): o estilo do
romance".
CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS
Erico Veríssimo
se caracteriza pela sobriedade da linguagem e pela realização de obra autêntica
e inovadora, sempre com o objetivo de facilitar o entendimento para o leitor
médio, sem perder de vista a busca de "autenticidade". A composição
de seu trabalho, após 1930, é "um meio termo entre a crônica de costumes e
a notação intimista". Segundo Alfredo Bosi, "a linguagem com que
resolveu esse compromisso é discretamente impressionista, caminhando por
períodos breves, justaposições de sintaxe, palavras comuns e, forçosamente,
lugares comuns da psicologia do cotidiano". No entanto, não deixa de
acrescentar novidades como: monólogos internos, trama não-linear, exposição das
personagens por focalização interna (mutuamente cruzada) e ordem temporal
estilhaçada por flash-backs.
Sua obra de
ficção se divide em dois grandes ciclos: o primeiro, o ciclo urbano, incluindo
os romances e novelas voltados à luta pela sobrevivência na cidade grande no
mundo em desagregação do pós-guerra. O segundo, o ciclo político, se refere aos
romances ligados a temas internacionais e nacionais, contendo crítica mais
severa às ideologias dominantes no período.
Obras como
Caminhos Cruzados [ver Antologia] , O Tempo e o Vento [ver Antologia] e
Incidente em Antares [ver Antologia] são grandes exemplos de sua vasta produção
literária.
PRINCIPAIS OBRAS
Romances e novelas
Clarissa
(1933); Caminhos Cruzados (1935); Música ao Longe (1935); Um Lugar ao Sol
(1936); Olhai os Lírios do Campo (1938); Saga (1940); O Resto é Silêncio
(1942); Noite (1954); O Tempo e o Vento: O Continente (1949), O Retrato (1951),
O Arquipélago (1961/2); O Senhor Embaixador (1965); O Prisioneiro (1967);
Incidente em Antares (1971).
Contos
Fantoches
(1932); As Mãos de Meu Filho (1942); O Ataque (1959); Galeria Fosca (1987).
Livros de Viagem
Gato Preto em
Campo de Neve (1941); A Volta do Gato Preto (1947); México (1957); Israel em
Abril (1969).
Literatura Infantil e Juvenil
A Vida de
Joana D'Arc (1935); As Aventuras do Avião Vermelho (1935); Os Três Porquinhos
Pobres (1936); Rosa Maria no Castelo Encantado (1936); As Aventuras de
Tibicuera (1937); O Urso com Música na Barriga (1938); A Vida do Elefante
Basílio (1939); Outra Vez Os Três Porquinhos (1939); Viagem à Aurora do Mundo
(1939); Aventuras no Mundo da Higiene (1939).
Biografias e Memórias
O Escritor
Diante do Espelho (incluída na edição da Ficção Completa, v.3, Rio de Janeiro:
ed. Aguilar, 1967); Um Certo Henrique Bertaso (1972); Solo de Clarineta - I e
II, 1973/76.
Ensaio
Brazilian
Literature: an Outline (1945), (vertida para o português como: Breve História
da Literatura Brasileira (1996)).
O TEMPO E O VENTO
Erico Veríssimo
O Tempo e o
Vento é uma trilogia épica que remonta ao passado histórico do Rio Grande do
Sul, dos séculos XVIII e XX, focalizando as disputas de terra e poder pelas
famílias Amaral, Terra e Cambará. Está dividido em O Continente, cobrindo o
período histórico do século XVIII até 1895, com as lutas do início da
República. O Retrato trata das primeiras décadas do século XX e O Arquipélago
chega até l945, durante o governo de Getúlio Vargas.
Na primeira parte
da obra, O Continente, ocorre o nascimento da estirpe Terra Cambará. Seu
primeiro ascendente Pedro Missioneiro, índio educado por padres espanhóis, irá
unir-se a Ana Terra. Nas linhas iniciais do romance, os eventos datam de junho
de 1895. É noite fria de inverno e lua cheia. José Lírio, com o medo lhe vindo
debaixo das tripas, subindo-lhe pelo estômago até a goela, como uma geada,
observa o Sobrado dos Terra Cambará. Recebeu ordens para subir ao campanário e
ficar de olho firme no quintal do Sobrado e fazer fogo sem dó nem piedade, caso
alguém aparecesse para tirar água do poço.
Agachado
atrás de um muro, prepara-se para cruzar a praça e chegar à igreja, mas teme
ser atingido por um tiro. Interroga-se de onde vem o medo e o atribui à
hereditariedade, ao sangue da mãe. Avança cautelosamente a cabeça e coloca
apenas o olho esquerdo no canto do muro para espiar o Sobrado.
Ao espiar com
um olho, vê apenas a fachada branca, a dupla fileira de janelas, os altos muros
da fortaleza. Conclui que o casarão tem "algo de terrivelmente
humano" e por isso seu coração pulsa com mais força. Espia a fortaleza de
baixo para cima. Sente tristeza, vinculada à presença do medo, temendo a morte
ali tão próxima.
Observa a
fachada do casarão por alguns instantes. Lembra-se de que Maria Valéria, a
mulher que ama, sem ser correspondido, está lá dentro do Sobrado. Solta um
suspiro, quase um soluço. Decide-se por mais uma corrida, mas permanece quieto;
da água-furtada do Sobrado surge um clarão, acompanhado de um estampido. Vê um
homem tombar. Enfim, José Lírio alcança o interior da igreja de N. Sra. da
Conceição, padroeira da cidade. Sobe devagarinho os degraus que levam ao alto
da torre. Sente um aperto no coração. O Sobrado se acha agora tão perto. Sabe
que perdeu Maria Valéria ao se transformar em um maragato. Sente que há mais
alguém ali no campanário. Volta-se e vê o mesmo sino que dobrava no dia do
enterro de sua mãe. Descreve a boca do sino como uma "boca de monstro
muito preta e aberta".
Fica a olhar
a fachada do Sobrado. Tem dois inimigos: o Sobrado a sua frente e o sino
pairando sobre a cabeça. Nesse momento, José Lírio entra no Sobrado através da
memória. Recorda-se dos serões, nas noites de inverno, as conversas amigas.
Pergunta-se o que se passa no Sobrado.
Licurgo espia
o campanário do interior do Sobrado. Há uma esperança de vida ali dentro; está
para nascer um filho de Licurgo. Sua mulher Alice já sente as dores do parto,
acompanhada pela irmã Maria Valéria, chamada de Dinda pelas crianças.
Licurgo vê os
dois cadáveres estendidos há dias no meio da rua, próximo ao solar. As feições
descompostas não podem ser vistas agora à noite, mas o vento já espalha o
cheiro pútrido que entra pelo casarão. Mas resiste, sabe que o lugar da família
é no Sobrado, ninguém os tirará de lá. Não está sozinho, seus companheiros, sua
cunhada Maria Valéria, Dona Bibiana, Alice, sua esposa, que está entre a vida e
a morte para dar à luz a criança, resistem com ele.
Está
atormentado com a esposa sobre a cama para dar à luz. Se nascer menina, terá o
nome de Aurora para celebrar a vitória sobre os que cercam o Sobrado. A memória
o traz de volta aos dezessete anos, quando sua mãe, Luzia, em cima de uma cama,
era consumida por um tumor maligno. Parece escutar os sons de uma valsa remota,
tocada na cítara pelos dedos maternos magros e pálidos. Sente até a estranheza
que a presença dela lhe provocava.
Toríbio e
Rodrigo, filhos de Licurgo, tremem sob as cobertas com medo dos federalistas
que cercam o casarão. Toríbio tem consigo o punhal que pertenceu ao seu avô. É
o punhal a palavra-senha que abre caminho para o capítulo A Fonte, cuja
história, sobre a luta entre Portugal e Espanha pela posse da Colônia de
Sacramento, aborda as origens épicas deste período.
É introduzida
a narrativa sobre a colonização no Rio Grande do Sul e a presença de padres na
catequização dos índios. Há o destaque para a história do índio Pedro
Missioneiro que cresce na missão, aos cuidados do cacique D.Rafael. Sua
educação é seguida de perto pelo padre Alonzo, proprietário do punhal que passa
ao poder de Pedro e deste para os homens da família Terra Cambará. Aí se
mesclam as lendas, os mitos e superstições à História oficial do Rio Grande do
Sul e às revoluções feitas ao lombo dos cavalos.
No capítulo
"Um Certo Capitão Rodrigo" é apresentado Rodrigo Cambará,
caracterizado pela crença de que Cambará macho não morre na cama. Bate-se nas
coxilhas contra os inimigos dos gaúchos sempre reforçando sua valentia. Casa-se
com Bibiana Terra, mas logo não suporta a vida sem os grandes desafios dos
campos de batalha, ao ar livre e sem os amores fáceis e descompromissados.
Morre em combate, quando os Farrapos lutam para tomar o casarão dos Amarais,
inimigos dos Terra Cambará.
O primeiro
senhor do Sobrado é Aguinaldo Silva. Pouco se sabe de sua vida. Diz ser
pernambucano. Corre o boato de que matou a esposa por tê-la encontrado com
outro homem. Suas feições são grotescas; baixo, de pernas muito curtas, uma
cabeça triangular, de pescoço curto, e uma cara de chibo.
Aguinaldo
gosta muito de dinheiro e de emprestá-lo a juros altos. Como pagamento dos
empréstimos, apossa-se, muitas vezes, de várias propriedades em Santa Fé,
inclusive do terreno de Pedro Terra, filho de Ana Terra com Pedro Missioneiro.
Aí constrói o Sobrado, solar digno de um nobre. Por esse motivo, a filha de
Pedro Terra, Bibiana, jura que se apossará das terras de seu pai.
A família de
Aguinaldo Silva tem um único membro, sua neta, Luzia, que estuda em um colégio
na Corte. Aguinaldo deseja dar à neta tudo o que os pais dela não puderam dar.
Entretanto, mais tarde, conta em segredo ao padre da cidade que Luzia não é sua
neta. Ele a adotou em um orfanato e a criou como neta, fato que a moça
desconhece. Ao deixar o Colégio, Luzia muda-se para Santa Fé e passa a ser a
"senhora do Sobrado".
Destoa das
mulheres do lugar, acostumadas a esperar pelos maridos, quando estes partem
para lutar nas muitas revoluções. Tudo em Luzia é novidade: é rica, bonita,
toca cítara - instrumento que pouca gente ou ninguém ali na vila jamais ouvira
- sabe recitar versos, tem bela caligrafia, e lê até livros.
Mas tem algo
de demoníaco; quando aspiram o perfume que emana dela, não podem fugir à
impressão de que a neta do pernambucano é uma "mulher perdida",
exemplo perigoso para as moças do lugar.
Os
primos-irmãos, Bolívar e Florêncio Cambará, apaixonam-se por Luzia. Mas ela
escolhe Bolívar, que levará a mãe Bibiana para morar com o casal, que o
incentivou a casar com a bela mulher, porque deseja tomar o Sobrado de
Aguinaldo Silva. Mas Bolívar está angustiado. A festa de seu noivado ocorrerá
no momento em que Severino, negro que compartilhou com ele as brincadeiras de
infância, será enforcado, diante do Sobrado. Não entende por que a noiva
insiste em manter a festa de frente para o enforcamento do negrinho.
Outra
personagem importante na relação com Luzia é o Dr.Winter. Este imigrou da
Alemanha, usa chapéu alto como chaminé e roupas estranhas. O doutor tem
interesse secreto pela moça. Lembra-se da festa de aniversário; ela toda
vestida de preto, junto duma mesa, a tocar cítara com seus dedos finos e
brancos. Nessa noite ficara fascinado a observá-la, e houve um minuto em que
uma voz - a sua própria a sussurrar-lhe em pensamento - ficara a repetir:
Melpômene. Sim, Luzia lhe evocava a musa da tragédia.
Por isso,
quando ia ao Sobrado, examinava-a furtivamente "com olhares
oblíquos". Winter se encanta por ser o primeiro a mencionar, naquela vila
tão distante, o termo Melpômene. As mulheres de Santa Fé, como Ana Terra,
Bibiana, Maria Valéria, têm outros valores. São mulheres de gaúchos, que, ao
partirem para as revoluções, deixam-nas esperando, criando os filhos. Luzia não
pertence a esse grupo.
Winter
sentia-se feliz por ser um estrangeiro naquelas terras: era uma forma de manter
a sua independência. Estava no Brasil porque se metera em uma revolução
fracassada e teve de fugir. Encontrou Carl von Koseritz, que o aconselhou a
estabelecer-se em Porto Alegre, mas dali não gostou e acabou em Santa Fé, atrás
das ruínas das reduções jesuíticas, cujas lendas o seduziam.
Bolívar passa
a noite, que antecede a festa de seu noivado, em claro por causa do negrinho
que será enforcado. Bibiana, ao vê-lo tão abatido, crê que é porque irá se unir
a uma moça como Luzia. O Sobrado era para Bibiana um intruso em cima de terra
tão querida.
Bolívar
caminha para a festa, mas a atmosfera que o envolve não parece ser de bom
agouro; tudo está marcado pela cor preta. A mãe está de preto, o ar parado, os
corvos voam pelo céu.
Mas Dr Carl
Winter, na festa, vê a bela Luzia vestida de saia bem rodada, verde, cabelos
presos por pente em forma de leque e no centro um faiscante brilhante, como a
Teiniaguá, a jovem bruxa moura que o diabo, segundo a lenda, transformara numa
lagartixa.
O
enforcamento ocorre na praça em frente ao Sobrado, enquanto Bolívar se
compromete com essa mulher-demônio. O relógio de pêndulo marca a hora do
enforcamento. Bolívar olha para ele e vê a imagem de um gato enforcado. O grito
do animal cruza-lhe o espírito. Num choque, Bolívar lembra-se dum gato que,
quando menino, ele vira um escravo enforcar no fundo do quintal, e o guincho
estrangulado do animal lhe traspassa a memória como uma agulhada.
Na imagem do
gato, vê Severino que, agora, será enforcado porque, em seu depoimento, disse
tê-lo encontrado com as roupas sujas de sangue. A partir desse evento, o júri
convence-se de que o negro não merece perdão, embora este afirme com
insistência que o sangue de suas roupas era dele próprio por ter apanhado muito
de seu patrão.
Bolívar,
quando vem para a festa, ao passar por Chico Carreteiro, é zombado por este que
lhe pergunta se haverá dois enforcamentos: de Severino e dele, ao se unir a uma
mulher.
Na praça, no
Sobrado, tudo fica tomado pelo silêncio. Severino pende da corda, os convidados
se calam. Luzia, como se nada tivesse acontecido, toca uma belíssima valsa na
cítara, enquanto um reflexo da bandeirola da janela lhe põe uma mancha verde na
testa. Para Winter todo o evento é uma "rústica comédia provinciana".
Meses depois,
Luzia e Bolívar se casam. Aguinaldo agoniza em seu leito de morte. Bibiana, a
sogra, tem o rosto iluminado, pois tomará, finalmente, o Sobrado. O relógio de
pêndulo pára de repente, fato considerado de mau agouro. A morte de Aguinaldo
coloca frente a frente Bibiana e Luzia.
Há uma
epidemia de cólera-morbo em Porto Alegre. O Sobrado é isolado porque Bolivar e
a esposa tinham estado em Porto Alegre e entrado em contato com a doença. O
isolamento toma também conta do interior do Sobrado. Bolívar está trancado em
seu quarto, sem comer, sem falar nem beber por ciúmes à esposa. Luzia está
fechada em seu quarto, tocando cítara, brigou com a sogra e não pode vê-la. O
filho do casal, ainda bebê, encontra-se isolado na água-furtada pela avó,
Bibiana, que não permite a visita da mãe.
Bolívar
resolve desobedecer à quarentena, imposta aos moradores do Sobrado, e sai
portão afora, aos berros, dizendo que não fica mais ali. É alvejado e tomba
morto. Luzia vive pouco, pois tem um câncer no estômago e Bibiana fica com o
Sobrado e o neto, Licurgo, para educar.
Senhor
absoluto do Sobrado, Licurgo casa-se com Alice, a quem não ama com fervor. Este
amor é repartido com a amante Ismália Caré. O tempo continua sendo marcado pelo
grande relógio de pêndulo. Ficção e História se mesclam no romance. Um exemplo
é a cavalgada em comemoração à entrega dos títulos de manumissão aos escravos
de Licurgo. Uma batalha é simulada, incluindo a imitação dos trajes próprios da
cavalaria.
Na segunda
parte, O Retrato, o filho de Licurgo, Rodrigo Terra Cambará, retorna de Porto
Alegre, onde estudou medicina. Representa um novo tipo em Santa Fé, mas ainda
está ligado ao destino de seus antepassados, que é lutar pelo Sobrado e por sua
família. Entretanto, está envolvido com a vida da cidade grande, entregue aos
seus vícios e virtudes.
Educado, ama
a música clássica, os grandes pintores e a literatura. Dá início a uma nova
forma de comando no Sobrado. Traz para o seu interior tudo que há de novo em
tecnologia. Ama os perfumes franceses e veste-se como um dandy.
O doutor tem
seu retrato, pintado aos vinte e quatro anos, ainda altivo, cheio de sonhos e
devotado à igualdade social. Mais tarde, desencantado com as mortes da filha
Alicinha e da amante Toni Weber, rasga o diploma, encerra a carreira de médico
e entrega-se à vida "desregrada".
Torna-se
político influente, amigo de Getúlio Vargas; faz negócios escusos e acaba
apontado como traidor pelos compatriotas. Enfrenta a morte e a "degradação
moral", abrindo espaço para seu filho, Floriano Terra Cambará, semelhante
fisicamente ao pai. Sua tarefa será redigir a saga da família.
Floriano
espanta-se com sua extraordinária semelhança com o pai. Sua história é narrada
na terceira parte, O Arquipélago. Seu maior intento é encontrar a si mesmo e
traçar pontes, entre os seus e o mundo. Escreve um romance rememorando a saga
familiar. Maria Valéria, a Dinda, tia cega e guardiã do clã, serve-lhe de guia.
Para
Floriano, a reunião dos familiares, acompanhando a doença de Rodrigo Terra
Cambará, assemelha-se a uma "comédia dramática", cuja cena final do
segundo ato tem o seu cenário adequado e as personagens nos devidos lugares. Aí
estão Flora, a esposa, sempre traída pelo marido a devotar-lhe uma espécie de
amor-ódio; Floriano; a cunhada deste, Sílvia, a quem o rapaz dedica um amor
oculto, correspondido, mas deixado de lado para Sílvia se dedicar ao marido e
ao filho que está para nascer; Bibi, irmã de Floriano, irresponsável e ausente,
educada sobre as areias de Copacabana; seu marido, Marcos Sandoval, homem de
extrema elegância.
Nesse
cenário, Rodrigo morre de ataque cardíaco, sozinho em seu quarto, enquanto
dorme. Seu velório, na sala de visitas, é duplicado pelo grande espelho.
Floriano, ao seu lado, cumpre o papel de herdeiro. Escritor da família Terra
Cambará parece, finalmente, encontrar a imagem que vai utilizar na introdução
do romance. Será a saga de uma família gaúcha através de muitos anos. Começará
por volta de 1745 com uma índia grávida, perdida no verde do Continente.
Senta-se à máquina, olhando para o papel e depois escreve dum jato: "Era
uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé,
que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado".
CAMINHOS CRUZADOS
Erico Veríssimo
É sábado, o
professor Clarimundo Roxo, solteirão, solitário, de 48 anos, desperta às cinco
e meia da manhã para começar o dia dando aulas. Sua preocupação é com o tempo,
sabe que o conceito sobre este é algo diferente daquilo que pensa a viúva
Mendonça ou o sapateiro Fiorello. Contudo, a escravidão ao tempo é algo
marcante.
Clarimundo
vive sob o tique-taque do relógio. Sente culpa quando se atrasa alguns minutos
para as aulas. Pensa no livro que ainda escreverá. Será de cunho científico,
nele pretende colocar toda sua cultura e algumas gotas de fantasia. O
protagonista escolhido é um homem lá da estrela de Sírio. Com um telescópio
mágico, olhará a terra e descobrirá a verdade das coisas. Prepara o café e se
senta para os costumeiros 40 minutos de leitura.
Às sete da
manhã, quem desperta é Honorato Madeira, lembrando-se, também, de chamar a
mulher, Virgínia. Ela desperta, mas se entrega aos pensamentos. Relembra que
tem um filho de 22 anos e um marido obeso, sem graça, que sempre faz as mesmas
coisas, o que lhe causa desgosto. Ele reclama da ida, à noite, ao baile do
Metrópole; bem poderia ficar em casa descansando do trabalho.
O filho,
Noel, já está tomando café e recordando os dias de infância, quando a negra
Angélica lhe preparava para ir à escola e levava-o à terceira esquina, onde se
encontrava com a menina Fernanda, sempre limpa, bem arrumada e alegre, num
contraste flagrante com seu estilo taciturno. Volta ao presente, recorda que
teve uma infância recheada de histórias fantásticas, contadas por Angélica.
Nunca correu
descalço pelas ruas ao sol. Seu mundo era dos livros, dos soldadinhos de chumbo
e a parede do quarto dos brinquedos limitava seu mundo. Este cai com a morte da
negra Angélica, quando Noel tinha 15 anos.
Sua primeira
experiência sexual foi repugnante, viscosa e violenta. Noel sabe que o horário
de refeição em sua casa é o momento menos cordial, de raros diálogos. A mãe
reclama de tudo: da roupa, do marido, das criadas. Diz que já devia estar
trabalhando. Não está estudando Direito? O melhor de sua vida era a amizade com
Fernanda, a amiga de infância.
Em outro canto
da cidade, Salustiano Rosa acorda às 9 horas com o sol batendo em cheio em seu
rosto. Dorme ao lado de uma moça loura, Cacilda, que encontrou na noite
anterior. Pede-lhe que saia logo do seu prédio, sem ser vista. Veste-se e sai
feliz, logo após a moça.
Às onze
horas, em outro lugar, Chinita pensa em Salustiano. Recorda-se do rapaz
tocando-lhe os bicos do seio por cima do vestido e acha a sensação deliciosa.
Hoje à noite, vai encontrá-lo no chá dançante do Metrópole. Ela está na casa do
pai, Cel. José Maria Pedrosa, onde decoradores embelezam tudo com enfeites
dourados e pintura na parede. D.Maria Luísa, a esposa, teme pelos gastos, mas o
marido quer que a vivenda dos Moinhos de Vento seja o melhor palacete do
bairro. A festa de inauguração será na terça-feira e Chinita redigirá os
convites.
D. Maria
Luísa conserva sempre o ar de vítima, eternamente triste e preocupada. A
riqueza do Cel. veio com a sorte tirada num bilhete de loteria, comprado com
trezentos mil-réis. A mulher chorou à tarde inteira, quando soube da despesa
com aquele pedaço de papel. Souberam da sorte, na véspera de Natal. Pedrosa e
os filhos ficaram radiantes, apenas D. Maria Luísa estava triste, brigando por
seu rico dinheiro, defendendo-o dos pedintes. O marido resolve se mudar para Porto
Alegre e todos da cidade de Jacarecanga vêm dizer adeus à esposa desconsolada,
sempre saudosa da vida simples de Jacarecanga.
Fernanda mora
na Travessa das Acácias. Ela descansa, enquanto espera a hora de ir para o
trabalho. Vai pensando na vida dura que tem levado, na morte do pai. A mãe,
D.Eudóxia, lhe chama à realidade, lembrando-lhe que não deve dormir. A senhora
é extremamente pessimista, crendo que tudo vai dar errado. A filha evita dar
muita atenção à mãe, prefere pensar em Noel e chamar o irmão, Pedrinho para o
trabalho.
Outro morador
da Travessa é João Benévolo, leitor dos Três Mosqueteiros. Gosta tanto da
leitura que se deixa transportar para a Paris de 1626, quando deixa de ser o
fraco Benévolo, tornando-se ágil e ousado. Sua mulher, Laurentina, fica furiosa
com a distração do marido. Quer saber se ele não vai procurar emprego; é 1 hora
da tarde e lá está ele lendo, já está desempregado há 6 meses! As contas estão
atrasadas, a costura que faz para fora pouco ajuda, não dá nem para o aluguel. Eles
têm um filho, Napoleão, magro, que chora por qualquer coisa.
Da janela da
casa, João e a esposa vêem um carro luxuoso estacionar e de dentro dele sai
D.Dodó, Doralice Leitão Leiria, esposa do comerciante Teotônio Leitão Leiria,
proprietário do Bazar Continental, onde Benévolo trabalhou. A senhora vem
visitar Maximiliano, seu empregado que está atacado pela tuberculose. Deixa
algum dinheiro, prometendo transferi-lo para um hospital. Parte feliz, certa de
que tem seu lugar garantido no céu.
Honorato e Noel
já saíram. Aliviada, Virgínia desce para o chá, aborrecida porque tudo lhe
lembra o marido e o filho. Trata mal as empregadas, fica aborrecida com a
juventude de Querubina, grita, ralha, humilha a empregada.
Teotônio
Leitão Leiria despede o motorista e segue a pé, para se encontrar com a moça
dos olhos verdes, Cacilda, que mora na Travessa das Acácias. Teme ser
reconhecido, vai cheio de culpa, porque pensa na caridosa esposa, Dodó. Cacilda
não apareceu ainda e Leitão fica temeroso, pedindo explicações à viúva Mendonça
pela demora. Cacilda chega e entrega-se a Teotônio, pensando no belo rapaz que
amou na noite anterior.
A volta de
Teotônio Leiria para casa repõe a rotina doméstica nos trilhos. A esposa
aguarda o querido marido para o baile no Metrópole, preparado por ela, para a
comemoração das Damas Piedosas. Depois vai ao quarto da filha, Vera, e pede-lhe
para não ler o tipo de livro que anda lendo: A Questão Sexual, de Forel.
No salão do
Metrópole, Salustiano encontra Chinita e a aperta, com certa violência, contra
o peito, convidando-a para darem uma volta lá fora. Dr. Armênio espera que Vera
compreenda o sentimento que lhe devota, mas a moça está interessada mesmo é em
Chinita. Honorato Madeira está louco para voltar para casa, mas tem que esperar
a decisão da esposa.
O professor
Clarimundo ouve batidas em sua porta. Trata-se da viúva Mendonça, que vem
reclamar a falta de pagamento do aluguel por Benóvolo, desempregado há alguns
meses. Conta que, toda noite, um sujeito mal encarado vem visitar a esposa de
Benévolo. Faz várias reclamações e vai embora.
Enquanto
isso, às 11 horas da noite, Laurentina, está diante de Ponciano, o visitante
mal-encarado, mencionado pela viúva. Em outros tempos, era o candidato
preferido das tias de Laurentina, com quem a moça morava. Elas queriam vê-la
casada com o moço. Mas João Benévolo apareceu, Ponciano se afastou. Após 10
anos, reaparece e se põe diante dela, todas as noites, esperando um instante de
fraqueza da mulher para pedir-lhe que abandone o marido e o siga. Ela já
compreendeu seu objetivo, mas não tem ânimo para falar. O visitante pede que
fique com 20 mil-réis e os deixa sobre a mesa, sonhando com o dia em que terá
Laurentina nos braços.
Na casa de
Honorato, a esposa Virgínia desperta, decide tomar umas pílulas
rejuvenescedoras. Olha-se no espelho e vê, lá do outro lado, Virgínia Matos
Madeira, mulher de 45 anos, cabelos meio grisalhos, queixo duplo e princípio de
rugas, tão diferente daquela que sente ser. Recorda-se de sua empregada já
falecida, Angélica. Ela criou Noel e dirigiu a casa até a morte. Quando o
Capitão Brutus começou a fazer-lhe galanteios e aparecer diante de sua janela,
Angélica ameaçou contar o fato a Honorato. O tempo passou, o capitão foi
transferido e Virgínia continuou levando a vida.
O palacete
dos Pedrosa continua sendo preparado para a inauguração. Chinita se comporta
como uma estrela de Hollywood e o pai paga-lhe todos os luxos que tanto
desgostam a mãe, a triste e desconsolada, Maria Luísa. O filho, João Manuel,
não leva vida diferente. Às vezes, não dorme em casa ou então só retorna de
madrugada, para dormir até o meio da tarde. A família está se acabando, para D.
Maria Luísa. Onde irá parar tudo aquilo? O luxo da casa, a mobília, os gastos
desnecessários assustam a dona da casa que prefere ser uma estranha e não
participar dos desmandos. Assim, se voltar à pobreza não sentirá a diferença.
É domingo.
Clarimundo está de novo na janela de sua casa, pensando em como será o livro
que vai escrever. Qualquer dia irá começá-lo pelo prefácio. Vê Fernanda e seu
irmão, Pedrinho, sentados para o almoço. A moça avisa a mãe que irá a Ipanema
para se encontrar com Noel. Fernanda deseja modificá-lo. Pensa no duro que dá
no escritório do Senhor Leitão Leiria, na luta com o fatalismo da mãe, enquanto
o rapaz só pensa em literatura, em escrever livros, sem nada fazer para tornar
o projeto realidade.
Mais tarde,
Pedrinho está no quarto de Cacilda, relutando em deixá-la. Ela diz que ele deve
sair logo, pois tem visitas a receber. O rapaz anda perdidamente apaixonado por
ela. Não consegue trabalhar, só vê sua figura o tempo todo. Lamenta o tipo de
vida que a moça leva. Sonha em lhe dar um colar muito bonito que viu na Sloper.
Cacilda fica aborrecida com as constantes visitas do rapazinho, mas não tem coragem
para magoá-lo.
É
segunda-feira, na casa de Benévolo a pobreza é gritante. Almoçam pouco, o filho
chora de dor no estômago, a mãe lhe dá elixir paregórico. Benévolo sonha, lendo
o livro, comprado com parte do dinheiro deixado por Ponciano. Quando a esposa o
irrita ou alguma coisa o aborrece, Benévolo assobia o Carnaval de Veneza. É o
que faz, ao ouvir Laurentina lhe mandar procurar emprego.
Na casa de
Chinita, o vai-e-vém é constante. Todos estão envolvidos com a preparação para
a festa inaugural, exceto D.Maria Luísa. Vera beija Chinita, loucamente, no
quarto e a moça se entrega às carícias da amiga. Depois, descem para o chá.
Noel,
trancado em seu quarto, tenta escrever seu romance, segundo o desafio de
Fernanda. Enquanto isso, João Benévolo vai ao escritório de Leitão Leiria,
tentando ser recontratado. Fernanda o recebe e diz que vai falar com o patrão.
Leiria lhe dá uma carta de recomendação, encaminhando-o a um amigo, dono de uma
fábrica de mosaicos. Assim que Benévolo se despede, Leiria telefona para a
fábrica e pede desculpas por ter envolvido o amigo naquele problema, mas foi
forçado, pede-lhe para não se preocupar com o desempregado.
Virgínia está
em sua janela, esperando por um novo galanteador: Alcides, postado do outro
lado da calçada, e vem cortejá-la todos os dias. A cada ruído, no interior da
casa ou barulho do bonde, sobressalta-se, deliciada por tudo estar ocorrendo
como no tempo de moça.
Terça-feira,
festa no palacete do Cel.Pedrosa. A orquestra toca no hall. Há doces e salgados
sobre as mesas. O proprietário está felicíssimo, vem-lhe à lembrança a imagem
do amigo de Jacarecanga, o Madruga, com quem fazia apostas e resmungava. Fica
imaginando a cara do amigo, se pudesse ver todo seu sucesso. Toda vez que algo
extraordinário lhe acontece sempre pensa na cara do amigo. Salu dança agarrado
com Chinita, que sonha que a festa é na casa de Joan Crawford. O namorado lhe
diz frases cheias de insinuações e a convida para ir até o parque. Num recanto
oculto, junto à piscina, Salu derruba Chinita, entregue definitivamente às suas
carícias.
Chove forte.
Salu desperta, o corpo dói, a cabeça está zonza. Logo recorda da noite com
Chinita, da pergunta da moça sobre seu interesse por ela. Vai ao telefone e em
surdina, Chinita marca um novo encontro. Está chocada, aturdida com o
acontecimento da noite anterior.Teme ficar grávida e ao mesmo tempo, sente
vontade de ficar para sempre com Salustiano.
Leiria fica
enciumado com a festa dada pelo novo rico, Cel. Pedrosa. Pensa numa forma de
derrotá-lo sem levantar a menor suspeita. Talvez, uma carta anônima resolva o
problema. Recorda-se que o Monsenhor Gross lhe pediu emprego para uma moça,
decide despedir Fernanda.
Pedrosa está
com a amante, Nanette Thibault que lhe pede um automóvel de presente, enquanto,
sete andares acima, a filha, Chinita faz amor com Salu. Virgínia, desgostosa
com a vida de casada, espera na janela por Alcides, mas ele não aparece. D.
Maria Luísa recebe uma carta anônima, dizendo que o marido, Cel.Pedrosa, tem
uma amante no Edifício Colombo. Ela analisa toda sua vida até ali; o filho vive
entre prostitutas e bebidas, a filha parece ter perdido o respeito, solta pela
cidade e, agora, o marido tem uma amante.
Quarta-feira,
6 horas da manhã, Clarimundo lê Einstein, enquanto Maximiliano, o tuberculoso,
morre sob os olhos da mulher, filhos e vizinhos. Chinita só pensa em Salu e
João Benévolo vaga pela rua, sentindo fome e frio; o dinheiro acabou, não há
alimento em casa. Cai de fraqueza com o estômago doendo. O carro da assistência
o apanha e o coloca numa ambulância.
Laurentina
chorou o dia inteiro, esperando pelo marido. Os vizinhos dão o que comer a ela
e ao filho. Ponciano já está ali sentado, olhando-a e dizendo que nada
aconteceu a Benévolo, ele é que não presta mesmo. Laurentina chora. Recorda-lhe
que a avisou. Por que não vem morar com ele?
Laurentina
sabia, há muito, que o convite ia ser feito, mas o que responder, não tem
coragem nem para se revoltar.O homem continua insistindo, mostra-lhe a carteira
cheia de dinheiro, afirmando que tudo será dela. Pode esperar mais um pouco,
afinal, diz Ponciano, já esperou por ela há dez anos.
Virgínia já
está na janela, mas sabe que Alcides não vai passar. Apanha o jornal e tem um
sobressalto, o retrato do rapaz está ali, estampado no jornal, morto por um
marido enciumado.
Noel,
finalmente, consegue fazer Fernanda entender que está apaixonado por ela. Não
precisou dizer tudo claramente, mas a moça, como sempre, adivinhou o sentimento
do amigo. D.Dodó comemora feliz seu aniversário e a filha Vera, indiferente não
consegue tirar Chinita do pensamento. Telefona para a casa da amiga, D.Maria
Luísa lhe diz que a filha saiu há 2 horas atrás para ir visitá-la. Vera desliga
e D. Maria fica pensando que o marido está com a amante e a filha?
Clarimundo chega
em casa, depois de dar aulas, e resolve aproveitar o silêncio da noite para
começar a escrever o livro que pretende sobre o homem da estrela de Sírio. Na
introdução coloca que, após observar de sua janela a vizinhança, resolveu
escrever sobre um observador, colocado num ângulo especial que, certamente,
terá uma visão diferente do mundo; termina, dizendo: "Pois eu te vou
contar, leitor amigo, o que meu observador de Sírio viu na Terra". De
repente lembra-se da chaleira fervendo, levanta-se para fazer o café.
INCIDENTE EM
ANTARES
Erico Veríssimo
A cidade de
Antares não consta nos mapas, apenas São Borja é digna de nota, nas paragens do
Alto Uruguai. Mas, há documentos comprovadores de sua existência. Seus ilustres
moradores têm repetidamente se manifestado sobre a injustiça. O prefeito, os
vereadores e até o padre se dirigiram ao Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística para protestar contra a acintosa omissão.
Apesar da
ausência nos mapas, Antares se encontra à margem esquerda do Rio Uruguai.
Acabou nas manchetes de jornais pelo incidente, ocorrido numa sexta-feira 13 de
dezembro de 1963 que a tornou notícia da noite para o dia; fama efêmera e
ambígua que não sensibilizou os cartógrafos.
O documento
mais antigo, sobre a existência de Antares, se encontra no livro de Gaston
Gontran, um naturalista francês que, visitando o local, encontrou com Francisco
Vacariano, proprietário das terras. Vacariano herdou as sesmarias do avô que
logo se apossou de algumas léguas pertencentes a outros estancieiros vizinhos.
No texto, consta que o gado, pertencente a Vacariano, descende dos bois e vacas
roubados por seu pai, na Argentina. O guia contou a Gontran tudo isso, pedindo
discrição absoluta, porque Vacariano é homem violento e vingativo.
Como
hospedeiro, no entanto, foi muito gentil. Gaston por cortesia lhe indicou, no
céu, a estrela de Antares. Vacariano achou o nome bonito e apropriado para um
povoado, melhor do que "Povinho da Caveira", dado ao lugar em que o
francês se encontrava. Pede a Gaston que escreva Antares num pedaço de papel e
agradece.
O segundo
documento, que se poderia chamar de pré-história de Antares, é uma carta do
Padre Juan Bautista Otero, mencionando sua estada na casa do Senhor Francisco
Bacariano, pai de uma dezena de filhos naturais com várias índias e que não os
batiza, nem os legitima. O sacerdote pergunta a Bacariano se ele não deseja
casar-se e este menciona que vai se casar em Alegrete com Angélica. De fato,
Francisco Vacariano se casa e com a esposa legítima tem 7 descendentes, entre
homens e mulheres. O primeiro filho se chama Antônio Maria. Na Guerra dos
Farrapos, Vacariano quase perde tudo o que tem.
Em 25 de maio
de 1853, "Povinho da Caveira" é elevado a vila e recebe oficialmente
o nome de Antares. Durante mais de 10 anos, Vacariano é autoridade na vila,
considerada município de São Borja.
No verão de
1860, Francisco Vacariano tomou conhecimento de que Anacleto Campolargo, rico
criador de gado, natural de Uruguaiana, deseja comprar terra nas proximidades
de Antares. Vacariano faz tudo para que os negócios de Campolargo não se
concretizem na região, não quer saber de intrusos por ali. Mas, Campolargo
consegue adquirir as terras e constrói uma casa de alvenaria. De pronto, as
duas famílias se tornam rivais.
Campolargo
consegue o respeito dos moradores e é o único a enfrentar Vacariano, o
"Chico Vaca" , como é chamado, pelas costas, pelos inimigos.
Vacariano é agressivo, autoritário, sem o menor tato. Antonio Campolargo é o
oposto. É homem do murmúrio, do falar macio, modulando a voz de acordo com a
conveniência. Organiza, na vila, o Partido Conservador e, Vacariano, sem perda
de tempo, cria o Partido Liberal. Campolargos e Vacarianos vão tocando a vida
como criadores de gado e de cavalos na região.
Anacleto
Campolargo consegue separar Antares de São Borja e elevá-la à categoria de
cidade, no dia 15 de maio de 1878. Chico Vacariano, com quase 80 anos, cai
morto no dia da celebração desse grande evento, desapontado porque seu inimigo
conseguiu concretizar seu velho projeto. Anacleto transfere os festejos para
dezembro do mesmo ano e, nesta data, falece por ter sido mordido por cobra
venenosa.
Antares, em
1879, começa com chefes novos: Benjamin Campolargo que perdeu o olho, num
combate corpo a corpo, na Guerra do Paraguai e Antão Vacariano, o maneta, cuja
mão perdeu em solo paraguaio. De vingança em vingança, Campolargos e Vacarianos
vão se matando. Os Campolargo vão por algum tempo para a Argentina, retornando
depois. Antão é assassinado e os novos líderes são: os inimigos, Benjamim
Campolargo e Xisto Vacariano que se defrontam numa tarde em frente ao Grêmio
Republicano, mas voltam-se as costas sem nada dizer.
O tempo vai
passando e Antares vai recebendo, graças ao progresso, tudo o que há de novo.
Em meados da década de 20, membros das gerações Campolargos e Vacarianos vão
estudar em Porto Alegre e assim surgem advogados, médicos e engenheiros, mas
poucos deles exercem tais profissões. Trazem para a cidade uma visão mais
moderna e mais ampliada do mundo. Aos poucos, os velhos líderes, Xisto e
Benjamim, vão perdendo, sem perceber, parte de sua liderança. Além disso,
Getúlio Vargas astutamente conseguiu reunir os dois líderes e os fez assinar
uma espécie de "tratado de paz", publicado em vários jornais. Porém,
uma semana mais tarde, os dois morrem, um de edema pulmonar e outro pela
chifrada de um boi.
Seus
descendentes tratam de manter o acordo: Tibério Vacariano assumiu a liderança
familiar e Zózimo Campolargo, homem mais culto e um tanto indolente, se sentiu
mal com a idéia. Mas, a esposa, Quitéria Campolargo, conhecida como D.Quita,
ajudou o marido na difícil tarefa.
Revoluções e
governos vão e vem e os rivais ora aliam-se, ora afastam-se. Ajudam nas
eleições, favorecendo de maneira ilícita seus candidatos. Tibério passa a morar
alternadamente entre Rio de Janeiro e Antares. Em uma das estadas em Antares,
visita com a mulher a casa dos Campolargo e contam à "inimiga
íntima", D. Quita, a viagem ao Rio, ressaltando o aspecto político de
interesse da mulher de Zózimo Campolargo.
A política
segue em zigue-zague, Getúlio Vargas se suicida, mas o macabro incidente que
vai tomar conta de Antares ainda está por vir. Tudo tem início, quando um grupo
de professores e alunos do Centro de Pesquisas Sociais, da Universidade do Rio
Grande do Sul, sob a orientação do professor de Sociologia Martim Francisco
Terra, decide levantar dados para a obra Anatomia duma Cidade Gaúcha de
Fronteira. Escolhe a comunidade de Ribeira, na verdade Antares, como objeto de
estudo.
Xisto, neto
do Cel. Tibério Vacariano e aluno do professor Terra, fica radiante com a
escolha. O rapaz volta a Antares, em 1961, para preparar tudo para o estudo. O
repórter da cidade, Lucas Faia, criador do cognome "Jóia do Uruguai"
para Antares, dedica páginas inteiras à chegada do grupo, apelidado pela cidade
de gafanhotos por virem "em bandos no verão, em tempo de seca e com um
jeito de praga".
O grupo quer
saber que tipo de cidade é Antares, como vive sua população, seu nível
econômico, cultural e social, seus hábitos, gostos, opiniões e crenças
religiosas. Logo surgem uma série de boatos incriminadores.Para uns, os
comunistas tomam de assalto a cidade, para outros são espiões da CIA ou, ainda,
espiões do pessoal do imposto de renda.
Ao ser
publicado o estudo, toda Antares fica revoltada, sobretudo, seus líderes e
comerciantes. Acham que a análise, destacando a pobreza e a riqueza, é um
desrespeito e trabalho de comunistas.
No dia 11 de
dezembro de 1963, Tibério Vacariano passa a noite na companhia telefônica,
aguardando uma ligação para Porto Alegre, precisa falar com o governador. Às 5
horas da manhã, comunica-lhe que, ao meio-dia, Antares vai parar completamente,
porque vai entrar em greve, os trabalhadores exigem salários mais justos. O
governador diz que nada pode fazer, pois o país é democrático.Tibério sai
decepcionado.
Todos estão
assustados com o princípio do movimento. Os líderes, os comerciantes e os donos
de fábricas não querem atender as reivindicações dos trabalhadores, porque não
têm condições. Enquanto isso a esposa de Tibério, D.Briolanja, acorda o marido
de sua sesta e lhe conta, em prantos, que D.Quita Campolargo teve um ataque do
coração. O marido se veste às pressas e saem em direção à casa da morta.
Pelo caminho,
cruzam com o médico que lhes confirma o falecimento, acrescentando que ela foi
a sexta pessoa a morrer na cidade esse dia. Tibério pergunta quem são os outros
e o médico vai apontando: o professor de piano, Menandro, que se matou cortando
os pulsos, O Barcelona e Joãozinho da Paz, o resto era gentinha sem
importância.
Tibério passa
a noite velando D.Quita, lamenta perdê-la, pois não terá mais com quem
discutir. Sabe, pelo prefeito, que Cícero Brando, outro amigo, faleceu, assim
que deixou o velório. Para piorar as coisas, às 10 da manhã do dia seguinte, o
cemitério local está interditado pelos grevistas e os mortos não podem ser
enterrados.
A situação na
cidade está insuportável; a morte de D.Quita, do Cícero e de outras quatro
pessoas, a greve geral, as loucuras de Jango Goulart e as do Brizola. Tudo
respira anarquia nacional.
O féretro de
Quitéria Campolargo segue até à Matriz e o caixão é colocado à frente do
altar-mor. Mais tarde, partem em cortejo até o cemitério, encontrando a entrada
bloqueada pelos grevistas. Seguem conversações, desafios; o professor Libindo
sugere a dispensa dos coveiros para que eles mesmos enterrem D.Quita.
Geminiano, o chefe dos grevistas, se nega a aceitar. Não permitirá o enterro de
ninguém sem que os patrões tenham atendido aos trabalhadores. Também afirma que
o caixão de Quitéria ficará junto com os 6 restantes, como reféns do movimento
em cumprimento às decisões da assembléia.
Lucas Faia
faz a proposta de deixarem os esquifes sob a custódia dos grevistas e
retornarem no dia seguinte, talvez, saia um acordo até lá. Resolvem aceitá-la
por ser a saída mais sensata. Entre alguns presentes, corre a notícia de que os
genros de D. Quitéria estão tristes, porque a velha está no esquife com suas
jóias mais preciosas.
O chefe do
movimento coloca homens, guardando as ruas que dão acesso ao cemitério. Os
caixões foram deixados ali na colina. Surge um vulto que vem em direção ao
caixão de D. Quita em busca das jóias. Abre o caixão com um pé de cabra. No
entanto, os olhos da defunta estão abertos e os lábios começam a se mover, dizendo:
"Senhor, em vossas mãos entrego a minha alma", para espanto do ladrão
que foge em disparada.
D. Quita sai
de seu esquife e retira a tampa do caixão ao lado e de lá sai o advogado Dr
Cícero Branco. A velha olha para as estrelas e pelo Cruzeiro do Sul sabe que
deve ser 3 horas da manhã. Indaga porque estão insepultos. Busca suas jóias e o
Dr lhe assegura ter estado em seu velório e tê-la visto sem elas. Quita
revolta-se, suas ordens não foram cumpridas pelos familiares.
Depois o
advogado abre o outro caixão, fazendo o mesmo com os 4 restantes. Em breve
estão ali Barcelona, o sapateiro, o professor Menandro Olinda, a prostituta
esquelética, Erotildes, João Paz, jovem idealista que morreu torturado pela
polícia, o Pudim de Cachaça, o maior beberão de Antares, assassinado pela
mulher.
Os mortos
indagam como podem estar mortos se falam e têm memória. Discutem o que farão
para resolver a situação de cadáveres insepultos em que se encontram e decidem
marchar pela manhã até a cidade, protestando contra essa condição. Caso se
neguem enterrá-los, ameaçarão o povo com a podridão.
Decidem que
cada um terá algumas horas para visitar sua casa. Depois, às 12 horas devem
voltar para o coreto e sentar no banco à espera do advogado, Cícero, que irá
buscar uns papéis em sua casa e entregá-los ao prefeito, intimando-o à
realização do sepultamento. Caso não tome providências, ficarão apodrecendo
ali, o que será muito prejudicial aos moradores. Ao amanhecer, os guardas de
sentinela, aterrorizados, vêem os sete defuntos levantarem lentamente de seus
caixões. Lucas Faia coloca no jornal toda a descrição do aparecimento dos
mortos na cidade.
Eles estão
fazendo a visita às suas casas. D. Quita segue lentamente para a sala de
jantar. Esconde-se atrás de uma porta entre aberta e fica ouvindo as quatro
filhas e genros conversando. Discutem com quem ficarão as jóias da falecida e o
que constará do testamento.
De repente
todos reclamam de um mau cheiro que toma conta do ar. D. Quita aparece,
avisando que voltou para buscar as jóias. Diz que, parte do cheiro, vem de seu
cadáver e a outra, do pensamento de cada um deles. Joga todas as jóias no vaso
sanitário, dá a descarga, ressaltando que elas foram herdadas pelo Rio Uruguai.
O advogado
Cícero Branco está em seu quarto e descobre que um homem está com sua mulher.
Diz ao rapaz que já sabia da infidelidade da esposa e, portanto, não lhe
causará nenhum mal. Vai ao escritório escreve algo e parte para o cartório do
Aristarco que, ao vê-lo, fica a contemplá-lo. O defunto retira um envelope do
bolso, perguntando se o notário reconhece a sua figura e pede-lhe que ratifique
sua assinatura no documento do envelope e coloque a data de 10 de dezembro.
Barcelona
está em sua sapataria examinando suas ferramentas. Vai até à delegacia falar
com o delegado, Inocêncio Pigarço, que atira no morto assim que o vê, vomitando
de nojo. O cadáver se dá por satisfeito e sai sob tiros dos soldados lá fora.
Vivaldino
Brazão, o prefeito, recebe notícias por telefone sobre a presença dos mortos na
cidade. Não crê em nada do que lhe dizem. O dr.Cícero aparece e quer que Brazão
descubra uma forma rápida de enterrá-los, dando-lhe quatro horas de prazo,
ameaçando-o com o apodrecimento.
Todos os
mortos fazem as visitas combinadas. A amiga de Erotildes solicita a Deus uma
boa morte, fazendo Erotildes porta-voz de seu desejo. Pudim de Cachaça vai com
o amigo fazer uma serenata para sua mulher. Ele perdoa Natalina por tê-lo
matado. João pede o auxílio do Padre Pedro Paulo para ajudar sua mulher a
fugir.
Toda a cidade
se move em direção ao coreto. Uma comitiva, tendo à frente Vivaldino Brazão e
Tibério Vacariano, vai para o encontro com o advogado dos mortos. No ar paira a
podridão dos cadáveres. O prefeito começa a falar, dirigindo-se aos mortos,
explicando-lhes que não pode atender o pedido, pois os grevistas cercam o
cemitério. Os patrões também não estão interessados a dar o aumento solicitado.
Pede que retornem a seus lugares e aguardem o sepultamento.
O advogado
contesta, a cidade presente na praça grita impropérios, outros aplaudem os
membros da comitiva. Enquanto os jovens, pendurados nas árvores, gritam.
Tibério saca o revólver e apontando para as árvores, grita: "Morte aos
bugios, morte aos bugios". Os rapazes revidam com "coronelote, velho
podre".
Dr. Cícero
Branco diz que a vida é um baile de máscaras. Pede que todos se aproximem,
porque o que tem a dizer é de grande interesse. O mau cheiro já tomou conta de
toda cidade e as pessoas protegem o nariz com lenços, algumas até vomitam.
Faz-se
silêncio e Cícero diz que o prefeito e o promotor público se referiram à
presença dos mortos como indesejável e incômoda aos habitantes. A rápida
aceitação de suas mortes lhes dá a liberdade para expor a todos o que pensam.
Tibério Vacariano se adianta, avisando que ninguém está interessado na opinião
dos mortos. Saltam vaias das árvores.
O advogado
começa desmascarando o Prof. Libindo, acusando-o de travestir-se de sábio, Dr.
Lázaro de médico humanitário. O prefeito ora atua de Dr Hyde, fazendo vistas
grossas à violência policial, ora de Dr Jeckyll, cultivando orquídeas. O
Coronel Vacariano ostenta naturalmente o papel herda
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